Monday, December 14, 2015

Rios de concreto



“Tirou-me de um poço de perdição, dum tremedal de lama; colocou-me os pés sobre uma rocha e me firmou os passos.” Salmo 40:2

A vida do ser humano muda quando ele se torna capaz de limpar sua  própria bundinha, lá nos primeiros anos da infância. Existe algo forte em não ter mais de pedir pra mãe vir nos limpar das merdas que a gente mesmo faz. Obviamente esse grito de socorro ainda virá muitas vezes durante a vida, mas não deixa de ser válido que, no mais das vezes, a gente aprende a se virar com os rejeitos que produz.
É estranho pensar que uma lição tão básica tenha sido esquecida pelos donos da BHP, da Vale e da Samarco. Difícil imaginar que se possa criar um enorme penico aberto num lugar alto e apenas esquecê-lo lá, na confiança plena de que nada precisará ser feito. Infelizmente não vai adiantar só chamar a mãe pra consertar o estrago que essa lama causou.
E agora vemos os peixes mortos nas margens, duros de tanta lama. Toda a vegetação se tornou um marrom disforme, em que se podem ver volumes de muitas coisas agora sem distinção, uma massa sinistra e fedorenta que arrebatou toda a vida e agora seca, cimentando lentamente o leito de um rio outrora vigoroso e pródigo.
É triste perceber que um País rico em um recurso tão essencial não seja capaz de administrá-lo de forma minimamente responsável. O que se vê nos estados de Minas Gerais e do Espírito Santo é a completa prostituição da água, não há outro nome para essa atitude. Cometemos as maiores atrocidades contra o meio ambiente e pensamos que iríamos escapar sem problema.
Não é assim que a coisa funciona. Se já não funciona com o dinheiro, que é coisa de homem, imagine com um rio, que é vivo, todo um ecossistema cheio de bichos e plantas fundado num equilíbrio delicado. Vida exige cuidado.
Isso não está direito, rapaz, não é jeito decente de se tratar a criação. E aqui não falo de se tornar um abraçador de árvores ou ecochato, mas de uma ponto fundamental sempre ignorado que é a dignidade da terra, que é obra de Deus e que ecoa Sua glória em sons, cores e gostos indecifráveis para a maioria dos homens. Por falar nEle, imagine o que deve ter pensado quando viu o estrago feito - "eu deixo um rio arrumadinho e vocês me aprontam uma dessa? Não me façam descer aí pra consertar essa bagunça. Quando eu for, quero que tudo esteja um brinco". Uma palavra figurativa dos Salmos se tornou realidade no coração do Brasil. Acode, Jesus!, que o povo é ignorante e não sabe.
A justiça pode determinar multas irrisórias para a reconstrução da cidade, as empresas podem continuar tentando limpar suas barras, mesmo estando sujas até o alto da cabeça, não interessa; qualquer criança sabe que deixar que essa tragédia acontecesse foi um erro crasso e evitável, sem o qual a vida do planeta seria melhor. E cabe a nós todos agora, seres humanos,  lenientes e irresponsáveis, restaurar a imensa latrina que acabamos de criar. Haja paciência divina - por enquanto, há; não abusemos, porém.

Tuesday, November 17, 2015

Seguidor de ninguém


Passada a tempestade no copo de tristeza que eu tive de beber não tão recentemente, outras pequenas picuinhas virtuais vieram para atazanar meu dia-a-dia. Eu não pedia por elas, nem procurava saber, mas elas pululavam no meu feed como pequenas pragas sugadoras de alegria, pés de irritação barata. 
Foi então que, animado com os bons resultados que tive com o primeiro unfollow, considerei utilizar essa ferramenta preciosa em todos os meus contatos no Facebook. Sair por inteiro da rede era uma medida sobremaneira drástica, porque lá havia convites e muitas atividades que seriam difíceis ou impossíveis de se encontrar em outro meio. 
Comecei a pesquisar se havia alguma extensão de navegador que fizesse o serviço para mim. Com centenas de contatos para desseguir, seria mais fácil se um robô ficasse apertando unfollow pra mim em todo mundo, ou melhor, fizesse tudo de uma vez. No entanto, essa maravilha tecnológica aparentemente ainda não existe, o que é uma pena - ajudaria muita gente. 
E assim fui clicando no unfollow de pessoa por pessoa, perfil a perfil, de todos os oitocentos contatos que eu tinha. O face percebeu minha estratégia e ficou cabreiro, já quis empatar dizendo "hmm, parece que você não está usando esse recurso da forma correta" e me limitou a trinta unfollows por sessão. Eu gostaria que existisse um robô capaz de fazer todo o serviço em um clique, mas jamais aceitaria que outro viesse me dizer o que eu faço de correto ou não com as ferramentas que me são entregues, então fiquei ainda mais firme no propósito de dar unfollow em todo mundo. 
Graças a essa limitação, demorei alguns dias para tirar todas as pessoas do minha linha do tempo. Foi um trabalho de paciência e, apesar de ser um serviço chato, valeu muito a pena! Não precisaria mais ver posts sem noção nem discussões idiotas; não teria de me irritar com notícias falsas nem peneirar o bom do ruim. Tudo que restou foram páginas e grupos. E a paz voltou a reinar. 
Hoje a minha relação com o Facebook é muito melhor. Isso porque o conteúdo das páginas geralmente é relevante, pode-se aprender alguma coisa dali. A zoeira também está lá, zoeira boa, que faz rir e diverte. Parar de seguir todo mundo ainda me fez amadurecer um pouco e selecionar com mais critério quem vê os meus posts e quem eu sigo em outras redes sociais. Eu ainda vejo discussões idiotas em um página ou outra, mas não tenho de mergulhar nelas nem ler muitos comentários - apenas percebo sua existência e passo contornando.
Isso não significa, porém, que todos os meus contatos postam coisas ruins e sem sentido. Pelo contrário, grande parte deles compartilha material relevante. Prefiro, no entanto, procurar saber a ter cada notícia sobre eles estampada para mim. Em tempos de excessos, uma das soluções que encontrei para administrar o conteúdo é evitar que ele chegue, e ir buscar o que me interessa. Solução pouco ortodoxa, admito, mas que me tem feito muito bem.

Sunday, November 08, 2015

Distantes Bodas


Nosso amigo João ia se casar, e decidiu fazê-lo em sua cidade natal. Eram oitocentos quilômetros de estrada até lá. O Lucas estava um pouco hesitante em oferecer o carro porque estava sem seguro. Eu estava hesitante em oferecer meu carro porque não tinha feito a revisão. E assim hesitávamos até os quarenta do segundo tempo.
Já era sexta quando finalmente decidimos abraçar o projeto da viagem. Dos poucos convidados candangos, sete já haviam desistido, e o João parecia um pouco chateado com isso. Se fôssemos os próximos a deixá-lo na mão, talvez não houvesse representante de Brasília naquela cerimônia. Lucas me perguntou o que fazer, falei "bora", depois perguntou à mulher, e ela disse "vamos".
O plano era eu ir até a casa dele no sábado de manhã e de lá seguirmos viagem. Acomodamos as bagagens e entramos em seu aconchegante 1.0 vermelho. Sabíamos que seria um desafio, mas tínhamos uma certeza: como o casamento era no domingo, poderíamos seguir com calma.
De fato, seguimos com tanta calma que, por uma desprogramação do GPS, demos uma volta de duas horas pelas estradas de Minas. O combustível começou a virar preocupação, então paramos pra abastecer. Sem muita ideia de onde estava, perguntei à caixa como chegar a Passos. Ela me mostrou o mapa e disse "tá longe, hein?". Conseguimos a rota e seguimos.
A luz do dia já havia ido embora, mas a noite demorava a cair por causa das nuvens que cobriam o céu. Era um trecho de pista simples quando começou uma chuva leve, fazendo refletir as luzes dos carros no asfalto. Até ali comíamos biscoitos, ríamos e conversávamos despretensiosamente, e eu dirigia.
Já era noite quando um aguaceiro desabou sobre nós. Pingos grandes e pesados se arrebentavam no parabrisa, e a visibilidade era muito baixa. Seguíamos apreensivos pelos morros, enxergando de longe o clarão dos que vinham no sentido contrário. Era um evento encontrar qualquer alma penada debaixo daquele temporal. Algumas, no entanto, desejando partir desta para uma outra, arriscavam ultrapassagens.
A chuva deu uma trégua já perto da cidade. Chegamos bem. Guardamos as coisas nos quartos e fomos procurar o que comer. Para nossa alegria, um restaurante muito bom estava a cem metros de distância. Voltamos rolando ao hotel.
O dia do casamento chegou e passou arrastado. Surpreendentemente, um casal amigo também resolveu aparecer, e assim tínhamos cinco amigos num casamento que inicialmente era só para a família.
O lugar estava lindamente decorado. Fios com lâmpadas incandescentes cobriam boa parte do gramado e, com a luz amarela, davam o ar de aconchego que merece um casamento ao fim da tarde. Começou a ventar e a chover pouco antes da cerimônia começar, mas nada que atrapalhasse a vibe do local. Três bênçãos necessárias e uma indispensável - quatro ao todo - e fomos comer. Voltamos rolando ao hotel.
Era dia de voltar pra casa. A viagem começou tranquila e depois ficou... Menos tranquila. Lucas e eu trouxemos o carro na parcimônia que a situação exigia, salvando gente imprudente e patrimônio mal aproveitado. Por termos dividido a condução, ninguém chegou muito cansado. 
Ainda restava um fim de tarde daquele 2 de novembro e tudo corria bem. Já deitado, pensava em toda a situação e em como quase não fomos viver a aventura do trajeto e a alegria de ver o amigo casando. Poucos antes de dormir, só um pensamento ocupava minha cabeça: valeu a pena.



Monday, August 17, 2015

E se as pessoas fossem carros



A pergunta pode parecer batida (sem trocadilho), principalmente depois dos filmes da Pixar sobre o assunto, mas é que sempre considerei as pessoas em termos automotivos. A referência poderia vir também de uma certa série de filmes de carros que se transformam em robôs e vice-versa, ou da minha coleção de carrinhos de metal, mas não importa. Alheio a qualquer papo sobre objetificação do indivíduo, quando conheço alguém , fico imaginando que espaço a pessoa vai ocupar na minha garagem.
Vejo o olhar e começo a pensar em como seriam os faróis. Seriam mais redondos ou afilados? Analiso a estrutura corporal e começo a traçar as linhas da carroceria, com vincos, curvas e superfícies. Tento decifrar o que cada membro me diz e construir um desenho das rodas. Elegância ou robustez? Velocidade ou resistência?
Ao mesmo tempo, escuto as palavras que ela diz, o vocabulário que ela emprega e tento decifrar sua forma de pensar. Esses fragmentos de personalidade me serão úteis na construção mental da transmissão - se vai ser manual ou automática -, no escalonamento e na suavidade (ou aspereza) do câmbio.
Vou juntando mais peças e finalmente consigo chegar ao coração, digo, ao motor. Saber ideais e convicções de alguém me dá a noção do tamanho e da arquitetura do bloco, além de algumas pistas quanto ao regime ideal de rotação e à potência máxima a ele inerentes. Consumo também é uma informação importante, principalmente quando consideramos que o ser humano pode usar quase qualquer coisa como combustível.
Às vezes, quando começo a compreender alguém realmente, tenho de desmanchar o desenho da carroceria para acomodar seus componentes internos. Pode ser que a estrutura tenha de comportar mais peças, até então desconhecidas. Conhecer gente tem um quê de desenho automotivo: na primeira impressão a gente vê o conceito, mas a versão de produção, que vai estar conosco no dia-a-dia, pode variar bastante da ideia inicial.
Sempre dá vontade de namorar as esportivas. Design arrojado, beleza rara, potência superior e muita emoção na condução. A ressalva fica por conta do controle de estabilidade, que elas em geral não têm. Mesmo os homens se esforçam para se tornar bólidos. E com um desenho reluzente, se mostrando por aí, muitas vezes perdem para um milão, que apenas faz o que dele é esperado de forma competente e sem sustos.
Independente de qual seja a configuração de cada carango-pessoa, tem espaço para todo mundo nesta longa estrada da vida. Não raramente tenho dificuldades em compreender os mapas daqueles que passam por mim, mas vivo na tentativa de entender que cada um tem seu caminho, com seus buracos e tapetes para percorrer.
Certo dia compartilhei esse pensamento com um amigo Defender, que gostou muito da ideia. Ficamos a imaginar várias pessoas se transformando, desde a cor da lataria ao estilo do acabamento. Perguntei-lhe então que carro eu seria; ele me deu uma olhada e respondeu: "você seria um Mustang antigo". Não seria de todo ruim ter quatro rodas afinal...

Wednesday, July 22, 2015

Meias Brancas

Houve um tempo em que eu pensava que meias brancas eram o santo graal dos trajes masculinos. Simplesmente não havia peça indispensável como aquelas maravilhosas coberturas alvas e felpudas para nossos pés.Não importava a cor da calça, tampouco a cor do tênis, - nem vou falar calçado, porque não faz muito tempo que a definição desse termo foi atualizada em minha vida, abrangendo também sapatos sociais - meia branca era o must.
É fácil explicar tamanha fissura por uma peça da indumentária. Basicamente todas as referências infantis usavam meias brancas. A Turma da Mônica usava; os pagodeiros usavam; Michael Jackson usava; o time de futebol do Brasil usava e ainda usa, e os metaleiros também deviam usar, apesar de não ser possível a constatação fática.
Foi só depois de muito crescido que me dei conta de que meias de outras cores não são bregas, nem cafonas. Usar uma meia da cor da da calça ou do calcado na verdade significa não só uma complacência indolor às regrada básicas de vestuário,como também uma ode à diversidade. Finalmente entendi que nem todas as meias do mundo precisam ser brancas.
Isso significa que elas perderam seu lugar de respeito? É claro que não. Meias brancas ainda predominam por aí, são fáceis de achar e vão nos socorrer na hora do aperto e da escassez, como boas médicas que são na lida diária com calçados fechados - agora abrangendo os sociais. Elas apenas ganharam mais companheiras pra dividir um trabalho para o qual, embora servindo, nem sempre são o par ideal.

Wednesday, July 15, 2015

Dar e Receber

"Mais bem aventurado é dar do que receber". Só essa frase do Senhor Jesus já dispensaria toda a história contada abaixo, mas é bom ter um exemplo na vida.
Ano de 2010, Dia dos Namorados. Eu era um namorado atento e apaixonado, e sabia exatamente o que seria o presente da menina. Fui ao shopping já sabendo o que e onde comprar. Preparei uma cartinha, umas flores e uma embalagem. Dei.
Era uma jaquetinha jeans, dessas que acabam antes da cintura e servem mais ao estilo do que ao conforto térmico. Pude ver seus olhos se iluminando e seu rosto se abrindo em um sorriso bonito. Ela gostou! "Missão cumprida, rapazes! Belo trabalho", dizia o cérebro ao restante do corpo em meio aos muitos beijos e abraços daquele tempo.
Não é ótimo quando você ganha alguma coisa que queria muito? Pois tenha certeza de que quem te deu achou muito melhor. É mais legal dar o presente do que receber um. Falo, contudo, daquela enorme satisfação que se sente quando se dá um presente certo, aquele arrancador de sorrisos. 
Quando damos um presente bom, e por bom não digo necessariamente caro, significa que fomos bem sucedidos no exercício constante de memória e atenção existente em qualquer relação importante para nós. Há quem dê presentes caríssimos sem nada dentro, como que querendo comprar a afeição de uma pessoa.
Agora, timing é uma coisa importante. Certa feita tive aulas com um professor que dizia não dar presente em datas comemorativas. "Acho vazio de sentido, prefiro presentear quando tenho vontade. Aí é aquela comoção...", dizia ele arregalando os olhos e abrindo os braços.
E aqui já entramos num nível mais profundo da arte de mimosear: fator surpresa. Muito mais avançado em termos de memória, não é essencial, mas vale a investida. Quer seja uma paçoca, quer seja um chaveiro ou qualquer outra coisa, um regalo assim no contrapé pode dizer de forma muito eloquente que alguém é lembrado de forma especial.
Se uma mixaria ou não, se programado ou de supetão, é claro que vamos errar na lembrança também. Mesmo usando todo o recurso mental disponível e recordando coisas importantes, nem sempre somos felizes na hora de oferecer alguma coisa. E tudo bem. Bem aventurados são os que tem tempo pra tentar de novo, quem sabe com melhor sorte da próxima vez.
Quem me vê escrevendo sobre isso deve pensar que eu sou o maior presenteador destes trópicos. Longe de ser alguém tão pródigo, eis aqui apenas uma lembrança de que pequenos e bem colocados carinhos cotidianos podem ser muito valiosos quando a intenção é demonstrar que alguém é importante. Sem o elemento humano, o presente caro perde a graça; com ele, o preço não importa, apenas o valor.

Wednesday, July 08, 2015

Fartura e Angústia



Mais jogos do que posso jogar;
mais comida do que posso comer;
mais bebida do que posso beber;
mais roupas do que posso vestir;
mais mulheres do que posso amar;
mais lugares do que posso visitar;
mais sons do que posso ouvir;
mais livros do que consigo ler;
mais instrumentos do que consigo tocar;
mais melodias do que consigo inventar;
mais amigos do que posso acompanhar;
mais linhas do que consigo escrever;
mais paisagens do que consigo contemplar;
mais flores do que eu consigo cheirar;
mais sorrisos do que consigo sorrir;
mais lágrimas do que consigo chorar;
mais dores do que consigo suportar;
mais alívio do que consigo sentir;
mais ar do que consigo respirar;
mais cores do que consigo ver;
mais coisas do que posso comprar;
mais ideias do que consigo pensar;
mais botões do que consigo apertar;
mais problemas do que consigo resolver;
mais sono do que posso dormir;
mais energia do que posso usar;
mais dinheiro do que consigo gastar;
mais amor do que posso retribuir;

mais vida do que posso viver

Vivemos dias de inundação, de informação, de poder, de tudo. Todos são oprimidos - alguns por pedras, outros por almofadas, não importa: existe uma pressão a todos imposta para realizar algo.
A geração dos meus pais foi mais poderosa tecnicamente do que a geração dos meus avós; a minha é mais poderosa do que a dos meus pais, e a das minhas priminhas gordinhas será mais poderosa do que a minha.
A tecnologia de nossos tempos escancara as limitações do poder de escolha do ser humano. Tem tanta possibilidade pra tudo que só o fato de escolher já é um processo caro e estressante. Quer uma calça jeans? Mil modelos, em mil cores, em mil lojas. Carro novo? Mar de opções. Jogar na loteria? Boa sorte.
Existe jeito para tudo - até para a morte, em certa medida. Mesmo diante de um diagnóstico desalentador, é possível escolher mais de um tratamento e, em chegando o "único mal irremediável",  escolher entre um enterro ou uma cremação, a depender da vontade do falecido - mas que fale antes também, porque se se decidir depois, não vai adiantar.
Uma das maiores facas de dois gumes da realidade pós-moderna talvez seja o grande poder de troca em nossas mãos. Não digo a troca por defeito, mas a troca por gosto. Enjoou? Troca. Desgostou? Troca. Encheu o saco? Troca. Viu um mais bonito? Adivinha...
A ideia de troca fácil entre muitas opções passa a sensação de que, mesmo tendo dificuldade pra escolher uma alternativa de muitas possíveis, sempre poderemos conseguir coisa melhor. É uma ilusão perigosa, porque pode descambar para o pensamento escravizante de que nunca se terá algo que seja bom o bastante. Assim superestimamos nossa demanda, fazemos escolhas sem convicção e ficamos mais infelizes. 
E teria algum remédio pra esse infortúnio? Tem vários! Mais do que nunca, porém, a organização mental parece ser um recurso valioso demais para ser ignorado. Pensamento claro, valores definidos e objetivos estabelecidos. Não vai livrar ninguém do sufoco de fazer escolhas, mas vai ajudar a fazê-las mais facilmente.
Que maravilha angustiante é viver num mundo de possibilidades. E que paradoxo inescapável é se dar conta de que, enquanto para alguns afortunados existe a escolha sufocante, para outros tantos existe o nada implacável. Consertar esse quadro injusto é também uma questão de escolha, mas grande parte de nós prefere viver na angústia.

Monday, June 08, 2015

Efeito Mariposa

Era uma terça-feira fresca do mês de maio. Meus amigos vieram pra cá e fazíamos uma reunião costumeira. Enquanto pegava os talheres e pratos para servi-los, vejo um pequeno vulto esvoaçante entrando pela janela. Tomei um sustinho de leve, até que a mariposa, preta e cansada, pousa no chão branco da casa. Pensei em tirá-la dali, mas imaginei que ela voaria depois, retomando seu caminho de invasão noturna de domicílios.
Imaginei somente. Assim que todos comeram e se levantaram, um dos que estavam à mesa viu a mancha preta e, num súbito de terror e espanto, esmagou o inseto com seu sapato sem cadarços. Fez uma bagunça no chão, para o que providenciei um pano, e depois uma reflexão para mim mesmo.
O indivíduo vê uma situação, que espera desenrolar-se de certa maneira, sem interferir para que o resultado ocorra. No entanto, outra pessoa interfere, mudando radicalmente o resultado do evento. A isso chamei de "efeito mariposa". É mais fácil simplesmente falar "deu mariposa" do que explicar toda a história. Claro, primeiro terei de explicar a origem do termo, mas depois será automático. 
O trabalho se justifica considerando a recorrência da situação. Muita vez nessa vida a gente espera que alguma coisa vá se resolver sozinha, quando vem outro meter a colher e bagunçar o coreto, melhorando ou piorando. No caso de nossa ilustração, deu ruim pra coitada da mariposa, mas sendo outra a disputa ou os seres envolvidos, quem garante? 
O caldo engrossa mesmo quando entra um bocadinho de Teoria dos Jogos, e então realizamos que, às vezes é melhor agir, e às vezes é melhor esperar e ver o que acontece. No caso da segunda opção, corremos o risco do "efeito mariposa", mesmo que esperar seja a alternativa mais apropriada naquele instante. 
Não pensemos, também, que o interventor esteja totalmente certo de suas atitudes, nem que imagine as consequências de suas ações. Aproveitando ainda o restinho da história, meu amigo assassino de mariposas ficou extremamente constrangido com a situação. "Fico apavorado", ele disse, pedindo um pano e muitas desculpas. Sai caro para qualquer homem admitir medo de algo que não mata, não morde e não faz sofrer - nisso excluímos balas, lâminas, feras e mulheres - sendo este último fator por vezes mais perturbador do que os outros três.
Uma mariposinha brutalmente assassinada numa noite fria de terça serviu para reflexão e proveito. Aquela morte não foi em vão! Poderia ser predita? Nunca. Evitada? Talvez. Outras casas seriam invadidas, segredos continuariam encobertos e reflexões posteriores não existiriam. Longe dos olhos mais distraídos, continuará o efeito mariposa a invadir nossas vidas, sem que nos demos conta até que passe. 

Monday, May 18, 2015

Dengue

Nesse mês faz um ano que recebi alta depois de ficar três dias internado por suspeita de dengue. Foi uma experiência bastante significativa na vida, e senti que deveria compartilhá-la.
Eu havia passado um domingo cheio de febre e de banhos frios para começar uma semana ainda sem muita noção do que era saúde. Entre remédios vivi aqueles cinco dias, até que os hemogramas começaram a acusar uma queda acentuada nas plaquetas. Para quem já não tem muitas, como eu, era um fator preocupante.
Fui levado ao hospital no sábado, repeti o exame e a médica decidiu que eu havia de ficar era por lá mesmo. Isso porque o vírus havia tomado gosto pelos meus anticoagulantes, e pegou a lanchar meus evitadores de hemorragia. Um pouco menos de plaquetas e eu precisaria receber transfusões sanguíneas.
Foi numa das noites cansativas no quarto do hospital que me bateu uma tontura muito folgada. Minha pressão tinha diminuído sem explicação. Naquele momento, com o pensamento meio embaralhado, consegui firmar a ideia para então realizar que estava completamente entregue a uma circunstância sobre a qual eu não tinha controle. Para longe haviam ido minhas forças, minhas emoções, meus neurônios. Estava na mão de Deus. "Vamos esperar pra ver o que acontece", disse a enfermeira lá longe, trocando meu soro, e eu lá.
Felizmente, durante os dias em que fiquei internado, fui me recuperando e, antes do meio dia daquela terça, já curtia o sol bravo de onze horas pela janela do meu quarto. Via o vento passando os dedos pelas copas das árvores, tranquilo. Era um dia doce, com batata frita e suco de uva. Era um homem livre.
Desde então, sempre fui muito preocupado com a dengue. Meus amigos me zoam porque, nos ensaios da banda, sempre levo um repelente. Bem, talvez seja mesmo engraçado ver como pessoas que passaram por tempos difíceis na vida tentam evitar que a experiência se repita, e eu mesmo já fiz troça de muita gente que se cuida um pouco mais pra espantar o medo. Seja como for, repelentes sempre estão na lista do mercado ultimamente. 
Embora seja uma doença penosa e, muitas vezes, letal, aparentemente não temos dado atenção a essa batalha. Quero dizer que sim, uma grande parte da população sabe o que é necessário para combater o mosquito, mas não o faz. Não sem razão, o número de casos teve um aumento explosivo em 2015, e muita gente está, nesse instante, passando pelo que passei na cama do hospital, porém no chão, abandonada em corredores e entregue a outros tantos parasitas malditos que nos assolam.
A dengue é uma doença oportunista e muito curiosa. Basicamente ela tem se aproveitado da nossa apatia em manter as coisas organizadas e limpas. Nossos lotes abandonados, nosso relacionamento precário com o lixo e nossas vidas bagunçadas dão condições mais do que suficientes para que o mosquito se reproduza como quiser, tanto quanto permitam o seu sistema reprodutor e os seus poucos dias de vida. É de se pensar como um organismo com menos de um grama pode derrubar e matar um homem feito. Mais estranho ainda é quando se percebe que falta água para as pessoas, enquanto que para os mosquitos sobra.





Thursday, March 19, 2015

Quando Apertei o Unfollow

(fonte: http://goo.gl/7OZNkq)

Quando cogitei dar unfollow, confesso que não pensei ser grande coisa. Bastava apenas pegar o celular e apertar uns botões, foi o que me disseram. Não era nada difícil de fazer, mas deixei a coisa seguir, já que não recebia notícias mesmo. 
Já não nos falávamos fazia um tempo, não tínhamos qualquer pedaço de vida em comum, a não ser por aquele fiapinho virtual chamado follow. Ficamos nos seguindo de longe, fingindo não saber que, por uma miséria que fosse, aquele pequeno punhado de bits ainda era algo que poderia nos levar a saber mais de cada um. 
O tempo foi passando e eu vi que, ali dentro, como um brinquedo novo que quebrou depois de duas semanas, lá estava o perfil, a conexão inerte feito sombra risonha na tela branca. E do lado de cá, eu, sempre o moleque atormentado, que esperava que o boneco se levantasse, que fizesse alguma coisa, e que, em isto acontecendo, sairia correndo apavorado. 
Quando vi que precisava, demorei para juntar forças. Mais fácil me parecia fazer qualquer outra coisa do que levantar meu próprio dedo contra uma memória selecionada. Não tinha de ser uma coisa tão tensa, analisei. Mas tinha.
Quando tive de dar o unfollow, enrolei o que eu pude. Marcado era o dia, feio e amargo, coisa de resolução, não havia de passar. Sem nem pensar muito, foi o dedo no exato lugar, dois cliques, intenção, confirmação, que era pra ter certeza, e sem ser demais. 
A vista embaçou, caiu uma chuvinhazinha vagabunda de fina no coité e tocou aquela música do Legião. E digo sem exagerar que até a poeira do mundo dos vivos pairou quietinha no ar naquele instante, e depois caiu no chão novamente. 
Aí veio um alívio esquisito, desses que nos sucedem quando alguma coisa se resolve sem ser o resultado melhor. Foi isso. Tirei um peso de esperar e troquei por uma pedrinha toda escrita, que guardei numa gaveta. Não fico olhando sempre, mas sei que está lá. 
Meu telefone sobreviveu ao evento, como sempre fez depois de tantos outros unfollows. Também eu não morri, não muito, pelo menos. Deixei-o no num canto e fui tomar um copo d'água. Da janela, via o tempo clarear: ia-se embora a tempestade.

Monday, February 02, 2015

Pródiga Tragédia





Eis que Deus é grande, e nós não o compreendemos, e o número dos seus anos não se pode esquadrinhar.
Porque faz miúdas as gotas das águas que, do seu vapor, derramam a chuva,
A qual as nuvens destilam e gotejam sobre o homem abundantemente.
Porventura pode alguém entender as extensões das nuvens, e os estalos da sua tenda?
Eis que estende sobre elas a sua luz, e encobre as profundezas do mar.
Porque por estas coisas julga os povos e lhes dá mantimento em abundância.
Jó 36:26-31


Então chegamos a este ponto: o maior e mais rico país da América Latina está, com toda a ironia que a situação oferece, mergulhado numa crise de falta d'água. É curioso demais para não se manifestar. 
Se tinha alguma área em que eu imaginava que jamais passaríamos aperto, era a água. Estamos literalmente sentados em uma bolsa monstruosa desse líquido e temos a maior floresta tropical do planeta. E mesmo com tantos trunfos dentro de casa, muitos de nós já sentem a escassez e a secura no cotidiano. 
A situação parece ficar ainda mais cínica quando se percebe que o estado mais afetado pela seca da nação é, historicamente, o mais escarnecedor daqueles que sempre tiveram pouca água. Dia após dia, os reservatórios de São Paulo minguam, como que anunciando novos e mais difíceis tempos.
A questão da água no Brasil me parece estar mais relacionada à prodigalidade do que a qualquer outra coisa. Nunca fizemos muita questão de economizar um bem tão abundante e presente, apesar de sabermos de sua importância. Nossas calçadas sempre foram muito bem limpas com água potável, nossos vazamentos estão ali há anos, e é claro que precisamos tomar banhos de meia hora, isso faz parte da nossa cultura. O que não parece fazer parte dela é o planejamento.
Se o dinheiro não aceita desaforo, o que nos fez pensar que a água, muito mais valiosa, aceitaria? Se a gente trata assim um recurso sem o qual morreria em poucos dias, me apavora pensar em como tratamos os demais. Dizer que falta água no Brasil é como dizer que um ganhador de loteria hoje passa fome, algo absurdo, mas que a realidade mostra que existe. O fato é que, para quem não sabe como utilizar alguma coisa, nem toda a criação bastará.
E eficiência agora é o nome do jogo, as regras mudaram. Até que a situação se estabilize, serão necessários alguns anos, muito suor e muitas lágrimas. Esperamos que seja mais suor e menos lágrimas, para que haja mais trabalho inteligente e menos lamentação sem propósito. Pode ser que não mais vejamos abundância hídrica como antes; cada gota importará daqui para frente. 
Será que aprenderemos algo com essa experiência? Conseguiríamos nós ter um consumo responsável e eficiente, não só da água, mas de tudo que temos ao nosso dispor? Honestamente, desconfio, mas, ironicamente, faço a minha parte. Em algumas situações, a esperança reside no desejo de estar enganado.  É tempo de fechar torneiras e estancar vazamentos.