Friday, August 16, 2013

Cama arrumada

Certa feita, quando voltei de viagem com a família de uma antiga namorada, fui todo feliz contar o passeio pra minha avó. Ela então disse:

- Que beleza, hein, DanieL (um L gaúcho, mas ela era mineira)? Mas você arrumou sua cama?

Respondi que sim, e de fato eu havia arrumado minha cama. Mas fiquei com a pulga atrás da orelha. Por que raios ela me perguntaria isso? Não seria mais interessante perguntar sobre a praia, ver as fotos e comentar do hotel?
Claro que sim, seria muito legal ver as fotos, falar do hotel, que era novo, reviver em detalhes o jantar na praia. Porém, aquela senhora estava mais interessada em saber como andava o coração do neto, não em relação ao namoro, mas em relação a ele mesmo. 
Vovó sempre foi muito preocupada com o caminho dos filhos e dos segundos filhos. "Fico num cuidado", dizia quando a gente saía e não dava notícia. Os anos acumulados davam a ela a experiência e a legitimidade para nos criticar e nos corrigir.
Tinha a chama da bondade. Claro que, quando alguém morre, a gente tende a lembrar-se das coisas boas, esquecer as chateações e enterrar os defeitos junto com o corpo, mas dizer que dona Maria era boa soa como um eufemismo, até uma injustiça. Não negava ajuda; antes, ia atrás dos recursos para atender a quem pedia.
Dificuldades foram muitas. A mulher ficou viúva logo cedo, com três cabritinhos pra cuidar. Entregou sua vida ao Sagrado Coração de Jesus, e fiada nEle foi segurando as pontas, mandando os meninos estudarem sob a luz da lamparina. Não casou de novo, nem namorado teve. "Quando eu for, vou falar pra ele: 'tá aqui a Maria do jeitinho que você deixou'". Usou a aliança enquanto pôde. Nessa união nem a morte triscou.
Os filhos cresceram, todos eles sadios, cada um seguindo seu caminho. Vieram os netos, e foram amparados com o mesmo amor. Começaram os casamentos dos netos; no do mais velho e no da mais nova ela esteve. No final, o corpo não ajudava e a cabeça parecia querer sabotá-la, mas ela sempre se lembrava e fez questão de estar lá. 
Vovó não deixou bens. Se muito, uma casa e um barracão. Mesmo um pé de dinheiro, porém, não seria páreo para tamanho legado moral. Ela ensinou que a gente precisa estudar, trabalhar e ser correto, tudo com amor e honestidade. Fez isso muitas vezes falando, ralhando e até atirando seus chinelos em nós, mas o exemplo máximo foi o cotidiano.
E agora ela se foi. Já tínhamos uma responsabilidade enorme só por sermos de sua árvore genealógica, e agora ficou ainda pior. Foi difícil, foi tenso dizer adeus, mas se me perguntarem, direi que não foi nem de longe um dos velórios mais tristes que já vi. 
Hoje, quase duas semanas após o acontecido, estou aqui a relatar-lhes esses pedaços de vida. É que não consigo mais estender um lençol sem repensar a minha.


7 comments:

Cida said...

Meu garoto!!! Excelente texto. Vovó Maria deve estar feliz com a homenagem.

Unknown said...

Querido Daniel, não só vó maria ficaria feliz em ouvir seu texto, mas nossa bisavó odete estende em suas palavras, seu jeito simples e sincero de retratar o cotidiano e a vida dos que amava.

Unknown said...
This comment has been removed by the author.
Peregrinação a Aparecida said...

DANIEL, EM PRIMEIRO LUGAR GOSTARIA DE PARABENIZA-LO PELO BELO TEXTO QUE ESCREVESTE, REALMENTE DE MODO MUITO SIMPLES, MAS PROFUNDO VOCÊ RELATOU AQUILO QUE EXPERIMENTAMOS COM A VÓ MARIA. AO LER O SEU TEXTO EU ME EMOCIONEI, A CADA PALAVRA LIDA EU VISUALIZA A CENA DELA FALANDO. QUE NOSSO BOM DEUS POSSA ABENÇOA-LO E QUE VOCÊ COLOQUE SEMPRE ESSES DONS QUE ELE TE DEU A SERVIÇO DO PRÓXIMO.
FORTE ABRAÇO PRIMO.

Unknown said...

Muito bonito o texto. Parabéns!

Unknown said...

Muito bonito o texto. Parabéns!

Unknown said...

Lindo texto. Descreve um pouco da indescritível Dona Maria. Era uma das últimas casa de vó que eu tinha. Apesar de não ser minha avó me tratava como se assim fosse. Saudades. Bjs