Wednesday, July 08, 2015

Fartura e Angústia



Mais jogos do que posso jogar;
mais comida do que posso comer;
mais bebida do que posso beber;
mais roupas do que posso vestir;
mais mulheres do que posso amar;
mais lugares do que posso visitar;
mais sons do que posso ouvir;
mais livros do que consigo ler;
mais instrumentos do que consigo tocar;
mais melodias do que consigo inventar;
mais amigos do que posso acompanhar;
mais linhas do que consigo escrever;
mais paisagens do que consigo contemplar;
mais flores do que eu consigo cheirar;
mais sorrisos do que consigo sorrir;
mais lágrimas do que consigo chorar;
mais dores do que consigo suportar;
mais alívio do que consigo sentir;
mais ar do que consigo respirar;
mais cores do que consigo ver;
mais coisas do que posso comprar;
mais ideias do que consigo pensar;
mais botões do que consigo apertar;
mais problemas do que consigo resolver;
mais sono do que posso dormir;
mais energia do que posso usar;
mais dinheiro do que consigo gastar;
mais amor do que posso retribuir;

mais vida do que posso viver

Vivemos dias de inundação, de informação, de poder, de tudo. Todos são oprimidos - alguns por pedras, outros por almofadas, não importa: existe uma pressão a todos imposta para realizar algo.
A geração dos meus pais foi mais poderosa tecnicamente do que a geração dos meus avós; a minha é mais poderosa do que a dos meus pais, e a das minhas priminhas gordinhas será mais poderosa do que a minha.
A tecnologia de nossos tempos escancara as limitações do poder de escolha do ser humano. Tem tanta possibilidade pra tudo que só o fato de escolher já é um processo caro e estressante. Quer uma calça jeans? Mil modelos, em mil cores, em mil lojas. Carro novo? Mar de opções. Jogar na loteria? Boa sorte.
Existe jeito para tudo - até para a morte, em certa medida. Mesmo diante de um diagnóstico desalentador, é possível escolher mais de um tratamento e, em chegando o "único mal irremediável",  escolher entre um enterro ou uma cremação, a depender da vontade do falecido - mas que fale antes também, porque se se decidir depois, não vai adiantar.
Uma das maiores facas de dois gumes da realidade pós-moderna talvez seja o grande poder de troca em nossas mãos. Não digo a troca por defeito, mas a troca por gosto. Enjoou? Troca. Desgostou? Troca. Encheu o saco? Troca. Viu um mais bonito? Adivinha...
A ideia de troca fácil entre muitas opções passa a sensação de que, mesmo tendo dificuldade pra escolher uma alternativa de muitas possíveis, sempre poderemos conseguir coisa melhor. É uma ilusão perigosa, porque pode descambar para o pensamento escravizante de que nunca se terá algo que seja bom o bastante. Assim superestimamos nossa demanda, fazemos escolhas sem convicção e ficamos mais infelizes. 
E teria algum remédio pra esse infortúnio? Tem vários! Mais do que nunca, porém, a organização mental parece ser um recurso valioso demais para ser ignorado. Pensamento claro, valores definidos e objetivos estabelecidos. Não vai livrar ninguém do sufoco de fazer escolhas, mas vai ajudar a fazê-las mais facilmente.
Que maravilha angustiante é viver num mundo de possibilidades. E que paradoxo inescapável é se dar conta de que, enquanto para alguns afortunados existe a escolha sufocante, para outros tantos existe o nada implacável. Consertar esse quadro injusto é também uma questão de escolha, mas grande parte de nós prefere viver na angústia.

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